sábado, 31 de julho de 2010

Sócrates Brasileiro

Abaixo, trechos da interessante entrevista concedida pelo Dr. Sócrates, o "Magrão", à Caros Amigos.


Caros Amigos - A gente costuma começar o bate-papo falando da vida da pessoa. Fale um pouco de você, onde você nasceu, onde foi criado.
Sócrates – Bom, sou filho de um cearense maluco que inventou de mudar para fazer o seu próprio destino e nos ofereceu uma chance de estudar, ler e aprender. Mas eu nasci no Pará, a minha mama é paraense.

CA – De Belém?
S - De Belém do Pará. Meus pais moravam em Igarapé Açu, mas acabei nascendo na Santa Casa de Belém. Aí, por causa dessa loucura do velho, que virou funcionário público sem ter nenhuma condição para tal e entrou num concurso que só ele era candidato, nós viemos para o sul. Eu fui criado em Ribeirão Preto. Aliás, o Raí nasceu em Ribeirão, por isso ele tem o beiço grande. Já é a fase do contra-filé mesmo. Eu sou da fase sem filé. Nasci ainda na fase ruim economicamente da família. E daí para frente é só invenção.

CA - São quantos irmãos?
S - Somos seis, cinco homens e o Raí. Porque o Raí é diferente, todas as mulheres querem o Raí. O resto é homem normal. Tudo quanto é mulher quer o Raí. Nós, para arrumarmos uma, é um sufoco.


CA – Você é um dos líderes da Democracia Corinthiana, fez história dentro do futebol brasileiro. Como é que surgiu essa consciência política? Foi na faculdade?
S - Não tem um lugar. Na verdade, a tua sensibilidade política é estimulada pelos contatos que você tem. Quem me ensinou tudo que eu sei hoje, o que eu penso e o que eu sinto, foi o povo com o qual eu me relacionei. E eu tive o privilégio de estar no meio do futebol, onde o número de pessoas é muito maior do que em outras atividades.

CA – Faltou você contar como entrou no futebol. Você pulou essa parte.
S - É, eu estava na faculdade. De alguma forma, eu já era um ator, enganava para caramba. E, aí, os caras insistiam para que eu me tornasse profissional.

CA – Que caras?
S - Uns diretores do Botafogo. Eu jogava na preliminar. Já existia até um certo público para ver o nosso time, que era muito bom. E aí, no fi- nal do segundo ano da faculdade, eu falei: “vamos tentar”. Eram minhas últimas férias longas, de dois meses e pouco, e ia começar o curso clínico. O curso básico era muito pesado em termos de exigência temporal e o outro eu não conhecia. Imaginei que pudesse, de alguma forma, viabilizar isso, e comecei a treinar. Mas virei jogador de futebol durante dois meses. O acidente ocorreu quando o titular do time principal machucou e eu entrei. Eu entrei e fiquei. Voltaram às aulas e eu fui levando, fui levando, fui levando. Sei lá como, não dá para responder.

CA - O Botafogo estava na primeira divisão?
S - Primeira do Paulista.
CA - E Copa de 94?
S – É um orgasmo com a mulher que você não gosta.

CA -Ganso é um gênio ?
S – Sem dúvida. Não levar o Ganso é uma ignorância absurda.

CA -Ganso é ousado ?
S – Ele é um Michelangelo, ele vai fazer duzentas Pietá.

CA -Por que você acha que o Grafite foi convocado ?
S – Não sei. Pergunte à Branca de Neve.

CA -Você faria uma propaganda de cerveja ?
S –  De cerveja ? Claro. Isso é de uma hipocrisia absurda, todo mundo bebe cerveja, por que não pode ? Ninguém vai beber por causa da propaganda, nem fumar. Você vira fumante por causa do convívio social, não por causa da propaganda. Eu sou contra, por exemplo, propaganda de remédio, pois você estimula a auto-medicação. Isso eu não faria. Mas a auto-medicação de cerveja é boa. Não tem outra contra-indicação que não seja o álcool.

CA - Qual a relação dentro dos clubes com essa questão de fumar; tomar cerveja? Tinha esses hábitos quando você jogava?

S - Sim, sim, Fumo desde moleque. Ah, Todo ex-fumante é chato. Na verdade eu parei de fumar em 82 por opção pessoal, porque eu queria aumentar a minha massa muscular. Eu aumentei seis quilos de massa muscular, de janeiro a junho, para a Copa. Foi opção pessoal, fiz o cálculo do que eu precisava, queria fazer uma puta Copa.

CA- Depois voltou a fumar?
S- Nao, na verdade, eu parei de fumar por 20 dias e depois fiquei segurando devagarzinho. Fiquei fumando pouco, mas...

O Locutor insuportável

De Marcos Caetano, publicado na edição de julho da revista Piauí.

Amigos do esporte, torcedores do meu Brasil inzoneiro de cinco títulos mundiais, sejam bem-vindos a este espaço de literatura em alta definição!
Que beleza, minha gente. Que beleeeezaaaaa! Como é bom poder praticar essa arte bonita, bonita, boniiiiiita da palavra escrita! Porque, comigo, você sabe, amigo, informação é o que interessa. E para contar a minha história de quarenta anos de carreira e dez copas do mundo, eu preciso, antes de mais nada, agradecer a Brahma Chopp, Castrol gtx, Baterias Moura, Banco Cacique, Preservativos Olla e Sinaf - planos de assistência funeral -, pelo apoio incondicional que dão ao esporte em geral e a mim em particular. Que maravilhaaaa! Não foi fácil, amigo! Não foi fácil chegar até aqui. Só mesmo com a energia de uma Bateria Moura. Haja emoção! Sem o apoio dos milhões de torcedores que nos brindam diariamente com sua audiência, que acreditam na Seleção Brasileira e, acima de tudo, que consomem os bons produtos que apoiam as nossas transmissões, este homem humilde do interior de Goiás jamais teria chegado a um salário mensal de 2 mil reais, mais 975 mil de merchandising. Creiam-me, amigos do esporte: a vida nem sempre sorriu para mim. Mas, falando muito e gritando mais ainda, a verdade é que eu cheguei lá. Não pensem que o meu trabalho é fácil. Nada disso! Quando as pessoas me ouvem narrando partidas pela televisão, devem imaginar que eu tenho um emprego de sonho, que estou sempre presente aos grandes eventos globais e que vivo cercado de celebridades, mas - agueeeenta, coraçãaaaao! - a realidade não é bem assim. Narrar é uma coisa, comandar uma transmissão é outra. A cada jogo, eu sou obrigado a realizar uma série de atividades tão complexas, que você, amigo de casa, nem faz ideia (...)

Em seis olhares

Sobre o espetáculo Policarpo Quaresma, dirigido por Antunes Filho.



O teatro e a literatura se atraem e se estranham.
Por Luiz Fernando Ramos

"Policarpo Quaresma" justapõe a linguagem cênica consagrada por Antunes Filho ao mais famoso romance de Lima Barreto (1881-1922) sem alcançar uma síntese superior. A prosa irônica do escritor corre em paralelo à cena fluente do encenador e não chega a ocorrer uma fusão plena. Verdade que há momentos brilhantes, em que o livro se transmuta em matéria cênica e supera essa dicotomia. Mas, no geral, sem prejuízo do esforço coletivo do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) em mais uma realização de mérito, fica aquém de outras transposições de grandes romances feitas por Antunes Filho.

No trato com "Triste Fim de Policarpo Quaresma", já não há a surpresa de "Macunaíma" (1978), que demarcou uma inflexão na sua trajetória pelas três décadas seguintes, nem a retomada daquele estilo inaugural, como em "A Pedra do Reino" (2006). Há, sim, a confirmação de uma fórmula que, como tal, carrega o ônus da redundância. Ali estão os movimentos transversais do coro aglomerado no palco vazio, os guarda-chuvas e ricos adereços pontuais, o farsesco que beira o sublime, os solos surpreendentes e a trilha sonora eloquente. Por um lado, é belo perceber um grande artista confirmando suas marcas. Por outro, há o reconhecimento de uma teatralidade datada e que, se ainda impacta, se revela em vias de se esgotar.

Adaptação

A dramaturgia, assinada por Antunes, é outro problema. Durante dois terços do espetáculo, que coincidem com a primeira e segunda partes do romance, a adaptação é feliz, pois, sem desperdiçar quase nada, alcança leveza e fluidez notáveis, transformando em cenas luminosas os quadros que Lima Barreto traçou da vida suburbana do Rio de Janeiro do fim do século 19.

Na parte final, porém, que inclui todo o conturbado período pós-Proclamação da República e da chamada "Revolta da Armada", o livro parece pesar sobre a encenação. Incumbida da narrativa, ela patina e se arrasta. Isso, talvez, pela dificuldade de focar, na consciência do herói quixotesco, o fim de suas ilusões, principalmente com o regime militar, o que a prosa literária fez com minúcia.

A compensar esses problemas, ressalte-se a composição de Lee Thalor para Quaresma, personagem de espírito puro, cujo patriotismo doentio e integridade radical levam-no à perdição.

Seguro e senhor do jogo teatral, Thalor, que estreou no CPT em "A Pedra do Reino", volta a criar uma interpretação virtuosa que arrebata o público, como no sapateado ao som do Hino Nacional. Colabora nesse êxito um coro de 21 intérpretes, de onde despontam os outros personagens da trama. Outro destaque são os figurinos de Rosângela Ribeiro. Com uma base em preto e branco, elementos como a bandeira brasileira e outros detalhes cromáticos sobressaem intensamente e conspiram para o deslumbre visual A pena é que, a despeito desses sucessos, em "Policarpo Quaresma" o teatro não se emancipa plenamente da literatura, como Antunes já conseguira outrora. Aqui o romance lhe pesa mais do que o liberta.

Por Dib Carneiro Neto 

Síntese de uma trajetória retumbante. Exemplo do vigor criativo de um encenador em plenos 80 anos de vida. Lição de bom teatro que se alia a múltiplas linguagens artísticas. Soco na boca do estômago do público interessado em entender o Brasil de ontem para discutir o país de hoje. Assim surge Policarpo Quaresma, de Antunes Filho. Com sessões que andam lotando o Sesc Consolação e aplausos em cena aberta, o espetáculo enobrece os palcos paulistanos com momentos de genialidade. “O teatro faz justiça a Lima Barreto (autor do livro Triste Fim de Policarpo Quaresma)”, escreve Jefferson Del Rios. “Uma encenação que engrandece o desejo”, opina Mariangela Alves de Lima. “Há algo de diferente no sólido percurso do diretor”, comenta a crítica de dança Helena Katz, encantada com os cortejos. “Antunes está mais viscontiano do que nunca”, compara o crítico de cinema Luiz Carlos Merten. E um crítico convidado, o ator e diretor César Augusto, arremata: “Bom para o teatro, bom para o cidadão.”

COM O MÍNIMO, ANTUNES CHEGA AO MÁXIMO
Por Luiz Carlos Merten
Podem-se buscar, e não será muito difícil encontrá-las, as referências cinematográficas na deslumbrante adaptação que Antunes Filho faz de O Triste Fim de Policarpo Quaresma para o teatro. Dos irmãos Marx a lampejos de Luchino Visconti, Joaquim Pedro de Andrade e Federico Fellini, tudo está lá no palco do Sesc Anchieta, mas é bom não perder de vista a essência da montagem e ela é essencialmente teatral. O grande diretor Gabriel Villela, embora apaixonado por cinema, gosta de brincar, dizendo que o problema do cinema é a eletricidade. Basta tirar da tomada e não existe mais filme. O teatro independe disso. Pode ser encenado à luz de velas, nas ruas. Tem luz própria. Antunes Filho sabe disso - e o mais extraordinário na criação dos coros, que é sua marca (a maneira de deslocar e imobilizar grupos de atores, a oposição entre o movimento individual e o coletivo etc.), é justamente a nudez que ele impõe ao seu palco. Não existe cenografia em Policarpo Quaresma. Ou melhor, existem adereços, objetos e o próprio corpo dos atores é que constrói a cena aos olhos do espectador. É quando Antunes é mais viscontiano. O mestre, numa fase de sua carreira, antes da descoberta da lente zoom, dirigia sua câmera basicamente para o corpo dos atores e fazia um cinema que chamava de “antropomórfico”. Visconti era grande diretor de teatro, cinema e ópera e, embora não se possa dizer que Patrice Chéreau seja seu discípulo, essa qualidade, ou característica, ele herdou no mais fulgurante dos seus filmes, A Rainha Margot.

O livro cultuado de Lima Barreto já havia sido adaptado para o cinema por Paulo Thiago em 1998. Paulo José fazia o herói do Brasil, subtítulo aplicado a Policarpo Quaresma. Thiago é mineiro, como Joaquim Pedro, que também adaptou para a tela outro clássico da literatura, o Macunaíma de Mário de Andrade. Apesar das diferenças entre ambos, Macunaíma e Policarpo são heróis brasileiros devorados pelo Brasil. Antunes já havia feito o seu Macunaíma no palco. Surpreende agora que ele faça Lima Barreto dialogar com Mário de Andrade? Que o seu Policarpo, de alguma forma, seja a revisão de Macunaíma?

A crítica não foi para o papel nem para a internet, mas uma voz solitária reclamou de que a encenação de Policarpo Quaresma, o grande teatro de Antunes Filho, é coisa morta. Só pode ser brincadeira. Antunes, aos 80 anos, realmente debruça-se sobre si mesmo - e seu método -, mas não é para se (auto)plagiar. E a cena da saúva, as batidas ritmadas com o pé e, depois, o Hino Nacional, são coisas de gênio. Havia, desde o início, um grande desafio a encarar e era justamente a natureza da própria obra de Lima Barreto. Policarpo Quaresma é um livro muito descritivo. Carece de diálogos, ou pelo menos os reduz ao mínimo. Antunes e seu elenco tiveram de transformar descrições em diálogos/cantorias, ou então de sugerir cenicamente o não dito. Como se faz isso? Como se constrói uma dramaturgia que não seja só da palavra?

Policarpo Quaresma leva ao limite a arte da mise-en-scène. Com o mínimo, Antunes Filho alcança o máximo de resultado. Seus cortejos deslumbram os sentidos. Emocionam - nem o distanciamento crítico brechtiano significa que o espectador não deva se envolver nem se emocionar com o que se passa no palco. Toda essa pesquisa teatral se consolida nos atores. O elenco de Policarpo também é coral. Há um solo apenas, e é o do ator que faz o protagonista. Lee Thalor, que já havia feito Quaderna na Pedra do Reino de Antunes, não apenas corresponde como se supera. O mestre depurou seu discípulo. O criador e a criatura. Policarpo Quaresma não seria a mesma coisa, no palco, sem a potência criativa de Thalor.

Em A Pedra do Reino, Antunes já optara pelo palco nu, transformando-o numa representação da mente de Quaderna. Talvez seja o mistério, ou segredo, desse Antunes octogenário e talvez testamental que decifra os grandes textos definidores da cultura brasileira. O teatro de Nelson Rodrigues, a literatura de Ariano Suassuna, Mário de Andrade e Lima Barreto. Policarpo dialoga com Macunaíma e Quaderna. Este último sonha com um país em que o povo reina. Como Macunaíma, ele carrega um arquétipo, o do herói sem caráter, Quaderna encarna o herói do “nenhum esforço”, que acredita na utopia e que nunca vai parar. Policarpo difere de ambos para terminar igual. Ele é um patriota exacerbado, acredita que a utopia se constrói com esforço. Sonha com o tupi-guarani como língua de todos os brasileiros e tem planos para salvar a agricultura nacional.

Vai parar no hospício, as saúvas destroem sua plantação e ele próprio é devorado por um mundo que o hostiliza porque ele insiste em mudá-lo, quando seria mais fácil permanecer imóvel, gozando de benefícios. É aí que Policarpo Quaresma transcende o evento que é, no palco, para propor uma discussão ou interpretação do que seja o Brasil (e o brasileiro). Antunes não é um celebrador de Dioníso. Faz grande teatro para pensar sua arte, o País (e o mundo). Policarpo é um espetáculo/síntese do autor e da própria cultura brasileira, que ele vem enriquecendo.

USO DO CORPO É O QUE CONSTRÓI A DRAMATURGIA
Por Helena Katz

Lee Thalor sapateia nas formigas e no Hino Nacional. Eis a síntese mais precisa do que se vive por aqui desde a Proclamação da República. Cena genial do oportuno Manifesto Policarpo Quaresma que Antunes Filho e os preciosos atores do Grupo Macunaíma acabam de escrever com o seu teatro. Curioso que, como já tinha sido em Macunaíma, em 1978, mas de outra maneira, é o corpo que opera uma mudança também agora. O marco que Macunaíma foi, ao inaugurar o Teatro Coreográfico de Antunes Filho, passa por uma refundação com Policarpo Quaresma, que acaba de estrear em São Paulo, no Sesc Consolação.

Com Macunaíma, a dramaturgia começou a se tornar coreográfica porque elegeu a espacialidade como mestre de cerimônia da encenação. As soluções nasciam dos jeitos de mudar o formato aparentemente dado como pronto da caixa preta. Nela, Antunes foi desenhando as trajetórias de seus coros-procissões-blocos de rua, e regendo suas produções com os ritmos que ia marcando para as entradas, durações e saídas de cada cena. Mas agora, nesta sua 21.ª montagem, há algo de diferente se insinuando no seu sólido percurso de contribuições. Referências caras. O papel que coube ao espaço passou a ser de responsabilidade do corpo. Em Policarpo Quaresma, é o corpo que constrói a dramaturgia, que é mestiça de teatro de revista, das bufonerias, irmãos Marx, comédia de costumes, Kazuo Ohno, circo e Pina Bausch, dentre outras tantas referências igualmente caras a seu diretor.

Ele está no teatro desde 1948, quando, como ator, fez Adeus Mocidade com o grupo amador de Osmar Rodrigues Cruz. Passados quase 62 anos, nos quais foi refinando uma assinatura de profunda coerência, inicia uma nova década de vida (completou 80 anos em dezembro, nasceu em 12/12/1929), e aponta novamente para adiante, com esse outro corpo que começa a aparecer. Um corpo que não domina somente os deslocamentos e as trajetórias, como antes, mas que explora modos não verbais de falar, inventa jeitos de se fazer presente e, assim, vai fazendo a peça acontecer a partir dele.Nesse corpo, os figurinos e objetos de Rosângela Ribeiro funcionam como um outro tipo de texto. Ampliam os dizeres dos corpos do elenco afiado e afinado. A cena dos loucos ao som da Barcarolle dos Contos de Hoffmann, de Jacques Offenbach, é um bom exemplo dessas texturas.

Preparação. Antunes dirigiu seu primeiro texto brasileiro em 1959 (Alô… 36-5499, de Abílio Pereira de Almeida), tendo Ademar Guerra como assistente e ainda com o Pequeno Teatro de Comédia que havia fundado no fim dos anos 50. Mas parece ter sido com o Sem Entrada, Sem Mais Nada, de Roberto Freire (1961), que a leitura política do entorno adentrou nos seus interesses, e se estende até este Policarpo Quaresma, no qual atualiza o que Lima Barreto (1881-1922) publicou em 1911, e também o Rio de Janeiro do fim do século 19 (1890) lá descrito. O que o livro conta em três momentos distintos, Antunes transformou em texto corrido - trabalho que ocupou quase dois anos de preparação e ensaios. As contradições de um país em transição da monarquia para a República, e já corrupto, e já se fazendo à custa de violências, injustiças e arbitrariedades. A peça conta das contradições, ambiguidades e ambivalências que atravessam as duas viradas de século que nos separam desse tempo. Separam ou unem? Você tem somente até o dia 6 de junho para escolher. Esta é a data em que a temporada de Policarpo Quaresma se encerra.

O TRISTE FIM DE UM PATRIOTA DESLOCADO
Por Jefferson Del Rios

As grandes cenas de Policarpo Quaresma, adaptado da obra de Lima Barreto, lembram as tomadas gerais e os planos sequência de cinema. Como, por exemplo, a do majestoso baile de O Leopardo, de Luchino Visconti. Pode-se evocar igualmente Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Fellini porque Antunes Filho é um encenador de palco com sensibilidade de cineasta e de artista plástico. A montagem dá continuidade à estética iniciada com Peer Gynt, de Ibsen (1971), consolidada com Macunaíma, de Mário de Andrade (1978), e os ciclos Nelson Rodrigues, tragédias gregas e o universo de Ariano Suassuna (A Pedra do Reino). Sem esquecer os bons efeitos plásticos conseguidos com Shakespeare, Guimarães Rosa, Jorge Andrade. O resultado é emotivo e espetacular mesmo sem transmitir por inteiro o sabor da escrita descritiva e colorida do original (O Triste Fim de Policarpo Quaresma). O escritor, amoroso retratista do Rio de Janeiro do início do século 20 e criador de tipos formidáveis, exigiria, talvez, horas de representação. O espetáculo está mais direcionado para os focos ideológicos do romance; este é o objetivo de Antunes.

São Paulo novamente faz justiça a Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), que prossegue subestimado, embora, paradoxalmente, se lhe confira a estatura de Machado de Assis. Em 1956, a Editora Brasiliense editou as obras completas (volumes bem acabados, com capas do pintor gaúcho Edgar Koetz). Agora, o Centro de Pesquisas Teatrais (CPT) tira uma vez mais do silêncio o “mestiço neto de Gogol” na descrição do crítico Agrippino Grieco, que o nomeou “o maior e mais brasileiro dos nossos romancistas, o nosso primeiro criador de almas. Ele sentiu a tristeza e o humor que cabem na vida do pobre. Todo o Rio está na sua obra. Outros romancistas podem inspirar-nos maior admiração; nenhum outro pode inspirar-nos tamanho amor”.

O combativo Grieco sentiu em Lima Barreto o “sarcasta comovido e áspero” (também uma possível definição para José Alves Antunes Filho). Tais características estão evidentes no enredo caricato e acusador em que o Major Policarpo Quaresma é o nacionalista excêntrico e deslocado no tempo. Defende o tupi e a modinha como língua e música legítimas e oficiais, e tem uma ideia irreal da agricultura. Preconiza, de certa forma, o estranho nacionalismo de uma ala do movimento modernista da qual fez parte Plínio Salgado, o idealizador do integralismo. Mas tais fantasias nativistas esbarram na truculência do início militar da República, sobretudo no governo do Marechal Floriano Peixoto.

Ressonâncias. Por motivos afetivos e familiares, Lima Barreto não se entusiasmou com a queda da monarquia. Escapou, porém, da nostalgia conservadora ao se preocupar com o viés autoritário do pensamento positivista vigente nos quartéis. Com a brutalidade da repressão armada aos movimentos oposicionistas ou o ímpeto patrimonialista das elites e a corrupção na máquina administrativa. Sua ficção teve ressonância na busca de Antunes por retratos/sínteses do Brasil, e o resultado está no atual Policarpo em forma de libelo ilustrado por imagens fortes. A linguagem do espetáculo é uma brilhante fusão de comédias antigas de cinema, musical, melodrama radiofônico e circo. Paira sobre a ação um clima de tango e charge humorística. O sarcasmo chega ao auge no número de sapateado do Hino Nacional, momento de inevitável impacto simbólico. Os personagens têm intervenções rápidas, exceto o Major bem interpretado por Lee Thalor, o que não impede aos demais participantes precisos lances criativos, caso de Geraldo Mario que se faz notar em uma encenação que tem sua força baseada no coletivo.

A imagem emblemática do drama nacional emerge no desamparo do sonhador iludido, na derrota de Policarpo Quaresma. O espetáculo fixa aí o Brasil do ranço burocrático e da odiosa divisão da sociedade em “estamentos”, como apontaria Raymundo Faoro em Os Donos do Poder. Numa espécie de fulguração, os caminhos de Lima Barreto e de Antunes Filho se cruzam no patético com poesia; e tudo está dito.

A SOLIDÃO DE UM HERÓI E AS PAIXÕES MALOGRADAS
Por Mariangela Alves de Lima

Há mais de três décadas um herói sem caráter protagonizou o primeiro trabalho do grupo experimental dirigido por Antunes Filho. Figura emblemática do modernismo, Macunaíma foi, também para o teatro, a encarnação do hibridismo, da apropriação indiscriminada de diferentes práticas culturais e artísticas e, sobretudo, da rebelião contra as distinções hierárquicas entre o popular e o erudito e entre a tecnologia e o artesanato na produção das manifestações artísticas. Nas décadas seguintes o Centro de Pesquisa Teatral, incorporado ao Sesc, reafirmou, com ênfases diferentes, um ou outro corolário do projeto modernista. Quem examinar de perto as idéias e formalizações do CPT reconhecerá contornos nítidos ou esmaecidos das idéias e formalizações de Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Noêmia Mourão, Oswald de Andrade e Raul Bopp. Não só isso, porque, tendo como desígnio e prática ligar estreitamente o palco ao estudo teórico, o CPT mobilizou para a produção do seu repertório a historiografia, os estudos antropológicos e a vertente crítica sintonizada com as teses modernistas.

Agora, outro herói, este de muito caráter, sinaliza a ruptura temporária no desfile de obras que, ainda que de modo irônico, celebram as especificidades das civilizações americanas. Em Policarpo Quaresma, a nostalgia da origem e o orgulho da singularidade nacional confundem-se com a aspiração de pureza, quase de santidade - e é deste modo que Lima Barreto define sua personagem: “Desinteressado do dinheiro, de glória e posição, vivendo numa reserva de sonho, adquirira a candura e a pureza d”alma que vão habitar esses homens de uma ideia fixa, os grandes estudiosos, os sábios e os inventores, gente que fica mais terna, mais ingênua e mais inocente que as donzelas dos poemas de outras épocas.”

Fracasso. Ensopado de nativismo romântico, retemperado pelo cientificismo do final do século 19 que corrigiu os exageros dos primeiros anos da Independência, o pobre Major Quaresma é o antagonista natural da voga multiculturalista. Só sabe valorizar seu país natal. E o final trágico a que o destina seu criador é, entre outras coisas, o reconhecimento do fracasso do idealismo. Na perspectiva do diretor Antunes Filho, responsável pela adaptação de Triste Fim de Policarpo Quaresma e pela direção do espetáculo, a pátina resignada e amorosa que reveste o protagonista do romance é descartada de fora para dentro, ou seja, tudo o que o ingênuo Quaresma do espetáculo toca e vê é, do ponto de vista do espectador, de escasso valor estético. É singelo o gosto artístico suburbano e igualmente pobres são as festas que animam a vida de Policarpo e seus vizinhos. O que interessa no espetáculo é imaginação visionária desse Quixote da classe média. Embora ferozmente crítico das instituições, há no romance ambiguidades que fazem supor beleza nas canções ou verdadeira erudição no repertório cultural amealhado pelo infatigável empenho do major em conhecer sua terra. Arquitetado sob a hegemonia da escola realista, o romance faz justiça aos encantos do sarau suburbano, interessa-se pela descrição dos costumes e da paisagem, atribui valor positivo a aspectos da natureza tropical. Enfim, “vistos assim, do alto, os subúrbios têm a sua graça”.

Grão de loucura. No espetáculo, o sobrevoo não tem muita importância. Na adaptação de Antunes Filho, as cenas eliminam referentes de situação, como descrição de interiores, relações humanas e paisagens urbanas. Em parte o desbaste elimina ganchos cuja função seria a de prender o leitor ao livro cuja primeira publicação foi seriada. Dramática e mais abstrata, a encenação simboliza movimentos coletivos por cortejos que atravessam o palco no sentido longitudinal, algumas vezes de modo lânguido como os cortejos funéreos, outras vezes retilíneos como as paradas militares. De qualquer modo, as circunstâncias representadas pelos cortejos são semelhantes no seu deslizar fluido, sem propósito evidente, prestes a se dissolver quando se aproximam do ponto de invisibilidade. Nada sugere a continuidade dos grupos, antes ou depois de entrar em cena. O universo sufocante das repartições públicas, a politicagem tacanha da província e a corrupção e violência da Primeira República são formalizados como fatores semelhantes em uma soma cujo resultado é a solidão desse herói “tocado por um grão de loucura”.

No cerne do espetáculo, como um sentido unívoco, está a paixão malograda que, neste caso, são duas paixões malogradas. Há um paralelismo de tratamento que torna equivalentes, como apelo emocional e sedução estética, os sofrimentos de Policarpo e Ismênia. Como impulso para o ato ou como razão para viver, o mito da nação e o mito do matrimônio se equivalem. Tanto faz. Despojada, quase caricata ao apresentar de modo sumário o cancioneiro, as lendas e as fontes das pesquisas de Policarpo, a encenação engrandece o desejo e deixa de lado a proporção menor da coisa desejada. Prometeu e Policarpo têm a mesma estatura, pertencem ambos ao território sem fronteiras da tragédia.

SOCO NO ESTÔMAGO: BOM PARA O TEATRO, BOM PARA O CIDADÃO
Por César Augusto

Antunes Filho demonstra a mesma capacidade de sempre de enlevar o espírito da plateia no espetáculo Policarpo Quaresma - adaptação para o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto - com o Centro de Pesquisa Teatral do Sesc. Adaptar um romance para o teatro não é tarefa simples, porque implica na maioria das vezes em fazer escolhas. Nesse sentido, um leitor do romance, talvez, sinta falta de uma ou outra cena que ampare o sofrimento de Ismênia (Natalie Pascoal) ou a conduta de Olga (Tatiana Lenna). Essas lacunas, porém, não fazem falta, porque a linha de força dramática escolhida aproveita essas circunstâncias “secundárias” como espelho distorcido do sofrimento ou como paroxismo das “loucuras e devaneios” do Major Policarpo Quaresma (Lee Thalor). Com isso, Antunes põe uma lupa no caráter do Major e enxerga aspectos que lembram personagens de Ibsen (como Solness cujo desejo é o de edificar uma torre utópica, símbolo da sociedade) e de Herzog (como Aguirre, que, sucumbindo sobre uma jangada destruída, ainda tem sonhos de glória), além dos já investigados Macunaíma e Quaderna. Este procedimento dramatúrgico ajuda a transpor da estrutura literária o que há de teatralidade.

Assim é que Antunes joga com o tempo e o espaço na cena, criando um sistema que imbrica as antíteses: claro e escuro, entropia (desordem) e neguentropia (equilíbrio), adágio e vivace, solenidade e derrisão, sublime e grotesco, cômico e trágico, ideal e real. Isso provoca uma sensação de suspensão à dinâmica da peça. Dentre eles, destacam-se a cena inicial, mais do que um prenúncio, ela estampa, com ironia, o suplício, o escárnio e a tragédia a que Policarpo será submetido, os loucos do hospício para o qual ele foi enviado, a dança que mata as formigas - culminando com o sapateado do Major sob o Hino Nacional, os desfiles-cortejos das mortes de Ismênia e dos soldados, inspirados em Tadeusz Kantor, e o irônico tango de Marcos de Andrade e Fernando Aveiro.

Por tudo isso, embora Antunes admita gostar de personagens picarescos e Policarpo tenha este lado também, como Macunaíma e Quaderna - parece que o riso e o escárnio, em vez de linhas condutoras, são válvulas de escape que dão respiro ao subterrâneo trágico do Major. Vale dizer que uma coisa não exclui a outra, e sim se complementam, aumentando as contradições. Depois de tudo isto, é um triste fim ou feliz?

Feliz, pois o talento de Antunes e dos atores faz as pessoas contemplarem e se alienarem positivamente, no sentido empregado por Adorno, ao fenômeno estético. E, ao mesmo tempo, triste porque o substrato político de Lima Barreto - que diz ter visto “com desgosto a implantação da República”, através de patrulhas armadas, e “a falta de consciência civil” - parece mostrar que teorias como o positivismo (”filho tardio do Iluminismo com seu projeto de racionalidade”, segundo Eric Hobsbawm) em parte não funcionaram e não funcionam, no Brasil, onde, de acordo com o diretor, as tragédias são muitas vezes “baseadas em atos risíveis”. Mas, se por outro lado o relativismo também não tem ajudado muito, o que fazer? É nessa encruzilhada que Antunes através da peça parece colocar a todos, inclusive a si próprio. A peça é um soco no estômago: escancara nossa predisposição em lutar pelo direito à preguiça. O público veste, com Policarpo, a mortalha da cena final, fica também derreado, e, ainda assim, entende que, apesar da utopia natimorta, é preciso ser “dado ao maravilhoso”, como diz Lima Barreto, “ao mistério”, é preciso dançar, ainda que seja num canto escuro e só. Bom para o teatro, bom para o cidadão.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Os limões

Escuta-me, os poetas laureados
circulam apenas entre plantas
de nomes pouco usados: buxeiros alienas ou acantos.
Eu, por mim, prefiro os caminhos que levam às valas
cheias de mato onde em lamaçais
já meio secos meninos apanham
alguma esquálida enguia:
as trilhas que bordejam os taludes
descem por entre os tufos de caniços
e se metem nas hortas, entre os pés de limão.

Tanto melhor se a algazarra dos pássaros
se dissipa engolida pelo azul:
mais claro se escuta o sussurro
dos galhos amigos no ar que mal se move,
e as sensações deste cheiro
que não se larga da terra
e faz chover no peito uma doçura inquieta.
Aqui se cala por milagre
a guerra das desencontradas paixões,
aqui até a nós, os pobres, toca uma parcela de riqueza
e é o cheiro dos limões.

Vê, neste silêncio no qual as coisas
se entregam e parecem prestes
a trair o seu último segredo,
às vezes esperamos
descobrir um defeito da Natureza,
o ponto morto do mundo, o elo que não prende,
o fio a desenredar que enfim nos leve
ao centro de uma verdade.
O olhar perscruta em volta,
a mente indaga concerta desune
em meio ao perfume que se espalha
enquanto o dia enlanguesce.
São os silêncios em que se vê
em cada sombra humana que se afasta
alguma Divindade surpreendida.

Mas a ilusão se desfaz e o tempo nos devolve
à cidade ruidosa onde o azul mostra-se
apenas por retalhos, no alto, entre as cimalhas.
Castiga a chuva a terra, então; se espessa
o tédio do inverno sobre as casas,
a luz torna-se avara — a alma, amarga.
Quando um dia de um portão malfechado
entre as árvores de um pátio
nos surge o amarelo dos limões;
e no coração o gelo se dissolve,
e no peito estalam
suas canções
as trombetas de ouro da solaridade.

Eugenio Montale. Poesias. Edição bilíngüe. Seleção, tradução e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1997.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Rumos

Andamos pelas ruas a locéu. Não sabemos do que se trata. Um pouco de nós anda conosco, mas não sabemos exatamente o quê. Ah, se estivéssemos retorcidos ... inquieta é que estamos bem vestidos.

Túnel

Hoje, a grande vaidade é ser modesto, o maior preconceito é não querermos evidenciar preconceitos.

Não diga nada

Entre o segredo e o degredo estavas tu: felicidade clandestina.

Paluchiados

Fiscalizar os fiscais, espionar espiões, trair os traidores, desmoralizar especialistas. Sem amplitude não há vida, sem veredas não há sertão.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Erudito sofrimento

Engraçado um país que estimula o "investimento" em cultura a partir de desoneração fiscal, ao mesmo tempo em que participa do agravamento de um trágico colapso educacional. Entre o monstruoso e o sublime, lembro-me de que, há alguns anos, nos trens que ligam a região da Berrini ao subúrbio e a cidades vizinhas de São Paulo, ouviam-se Bach, Beethoven, Chopin, Mozart e Brahms. Esses trens desafiavam a conhecida lei da física, pois dois ou três corpos ocupavam sim o mesmo espaço no chamado horário de pico. As pessoas reclamavam. Queriam ouvir forró, pagode ou sertanejo. Nunca me esqueci da cena. Sempre quis escrever sobre isso. Nao sei se por galhofa ou melancolia. 

O dia em que o Datafolha derrotou Jânio Quadros (que venceu com 4% de vantagem)


Do Blog de Luiz Carlos Azenha:

Como os arquivos do Viomundo antigo estão em frangalhos, um problema que o Leandro Guedes promete resolver em breve, vou dar uma de caduco: contar de novo, em poucas palavras, uma história antiga, acrescentando alguns detalhes. Aconteceu, como diria aquele personagem do Chico Anysio, em 1985. Eu era um jovem, porém experiente repórter. Tinha pedido demissão da TV Globo pela primeira vez (o equivalente, naquela época, a pedir demissão da Petrobras), já que a emissora queria que eu fosse chefe do escritório de uma futura emissora, em São José do Rio Preto, mas eu queria me formar, o que exigia minha presença física em São Paulo (eu levava o curso de Jornalismo na Universidade de São Paulo aos trancos e barrancos e só colei grau em fevereiro de 1987, quando já era correspondente da TV Manchete em Nova York).

Um dia, estudante em São Paulo e desempregado, passei pela entrada do Hospital das Clínicas, onde Tancredo Neves estava moribundo, e encontrei o Heraldo Pereira, então repórter da TV Manchete, que me disse que a emissora tinha vaga para repórter (àquela altura eu já tinha quatro anos de experiência em TV, o que incluia longos meses cobrindo férias na Globo de São Paulo, com muitas reportagens em jornais de rede e algumas no Jornal Nacional). Fui contratado. Como aquele era ano de eleições para a Prefeitura de São Paulo, fui escalado pela Cristina Piasentini para acompanhá-las. Foi assim que passei a periodicamente visitar a casa do candidato Jânio Quadros, na Lapa, em São Paulo. Conheci dona Eloá, a ex-primeira dama. O ex-presidente tinha sido candidato a governador em 1982, nas primeiras eleições diretas para o cargo durante o regime militar. Perdeu para Franco Montoro. Agora ensaiava uma nova tentativa eleitoral, com apoio na centro-direita. Os outros candidatos importantes eram Fernando Henrique Cardoso, do PMDB de Montoro, herdeiro do MDB, o partido de oposição ao regime militar; e Eduardo Suplicy, do recém-formado Partido dos Trabalhadores.

Jânio concorria pelo PTB. Ele mesmo abria o portão da casa e nos encaminhava para um escritório anexo. Confesso que não era o candidato de minha simpatia (eu tinha votado em Montoro para governador e, se meu título fosse de São Paulo, provavelmente votaria em FHC para prefeito). Mas Jânio era um homem muito simpático. Pedia café e conversava com o jovem repórter como se eu pudesse decidir as eleições. Nas entrevistas, atacava Fernando Henrique Cardoso como alguém que teria mais intimidade com os subúrbios de Paris do que com a periferia de São Paulo. Jânio gostava de falar dos bairros que conhecia pessoalmente, especialmente da vila Maria, que era sua base eleitoral. Jânio dizia abertamente que parte da mídia era inimiga dele. Citava a TV Globo, razão pela qual, presumo, recebia tão bem as equipes da Manchete (sobre acertos de bastidores da Manchete com Jânio, eu era muito jovem para saber).

No dia da eleição, 15 de novembro de 1985, a TV Manchete instalou uma câmera daquelas grandes, de estúdio, na redação da Folha de S. Paulo. Ao longo da campanha eleitoral eu havia entrevistado o Otavinho, já que a Manchete tinha feito um acordo para divulgar os resultados das pesquisas do Datafolha, recém-criado. Uma das minhas primeiras intervenções ao vivo foi para anunciar o resultado da pesquisa de boca-de-urna do Datafolha em São Paulo. Fernando Henrique Cardoso seria eleito prefeito de São Paulo, previa o Datafolha. Já não me recordo qual era a margem prevista pelo instituto. No entanto, assim que a votação acabou e começou a apuração, os resultados do Datafolha eram distintos dos revelados pela contagem física dos votos. Ao longo da campanha, Jânio Quadros tinha se servido de pesquisas não-científicas feitas pela rádio Jovem Pan, que colocava equipes volantes para entrevistar eleitores nas ruas de São Paulo. Pelas “pesquisas” da Pan, Jânio seria eleito.

A situação foi ficando cada vez mais tensa na redação da Folha. Havia um terrível descompasso entre a previsão e a contagem. Por pressão da redação da TV Manchete (que conversava comigo pelo ponto e por uma linha telefônica específica), chamei o Reginaldo Prandi, que falava pelo Datafolha. A explicação dele, ao vivo, foi a seguinte: por enquanto as urnas apuradas são de regiões onde Jânio Quadros tem a maioria dos votos; quando chegarem ao TSE as urnas de outras áreas de São Paulo, Fernando Henrique vencerá. Segundo Conceição Lemes, que também era repórter em 1985, o governador Franco Montoro chegou a dar um entrevista à TV Record agradecendo os eleitores de São Paulo pela escolha de Fernando Henrique, aparentemente baseado na pesquisa Datafolha.

Ou não. Isso não me ocorreu na época, mas uma pesquisa de boca-de-urna viciada pode servir a interesses inconfessáveis: se a margem em favor de um candidato for bastante reduzida, pode permitir que pilantragem eleitoral mude o resultado. Como diria a Folha de S. Paulo, não há provas de que isso tenha acontecido então, mas também não há provas de que não tenha ocorrido. Ao fim e ao cabo recebi uma ligação de Pedro Jacques Kapeller, o Jaquito, o principal executivo da TV Manchete abaixo de Adolpho Bloch, que disse algo assim: “Azenha, esquece o Datafolha, pode dizer que o Jânio vai ganhar baseado na apuração”.

Foi o que fiz. Jânio, eleito, foi para a sede da TV Manchete, na rua Bruxelas, dar uma entrevista ao vivo. Ele venceu com 39,3% dos votos válidos, contra 35,3% de Fernando Henrique e 20,7% de Eduardo Suplicy. Ou seja, a “vitória” de FHC no Datafolha foi desmentida pela vantagem de 4% que Jânio obteve nas urnas. Infelizmente, não disponho dos dados do Datafolha de 1985. Aparentemente, essa é uma história que o instituto prefere esquecer.

Os problemas metodológicos do Datafolha

Do Blog do Nassif:

Por que diferenças tão grandes entre as pesquisas para presidente do Datafolha e do Vox Populi?

Para entender esse enigma, o primeiro passo é constatar que há meses, tanto no Vox Populi quanto no Datafolha não houve mudanças significativas nos dados. Em um, Dilma está na frente, em outro Dilma e Serra estão empatados. Mas em ambos os resultados estão inalterados. Significa que os dois institutos estão medindo o mesmo fenômeno. A diferença está no universo pesquisado.

Para João Francisco Meira Filho, diretor do Vox Populi, provavelmente o universo do Datafolha é mais restrito, como se fosse um sub-universo do Vox Populi – e de outros institutos.

***

A diferença reside na metodologia adotada por cada Instituto. O Vox Populi (e os demais) analisam os dados do IBGE e montam uma amostra que reproduza o perfil do eleitorado brasileiro. Definem o percentual de pesquisas de acordo com idade, sexo, escolaridade, região etc. Seus pesquisadores recebem ordens detalhadas: vá até a cidade tal, na rua tal, conte as casas até seis, entre na sexta e preencha o questionário. Depois, escolhe-se determinado número de questionários para fiscalizar se o pesquisador atuou corretamente. Em suma, é um modelo que busca repetir com precisão o universo populacional medido pelo IBGE e mantém estrito controle sobre a qualidade dos pesquisadores e dos questionários.

***

Por questão de economia e rapidez, o Datafolha optou pelo sistema de ponto de fluxo. Os pesquisadores vão às cidades a serem pesquisadas, escolhem os pontos de aglomeração que quiserem e pesquisam aleatoriamente. A metodologia do Datafolha pressupõe que, agindo aleatoriamente, se chegará ao perfil da população brasileira. Pontos de aglomeração são metrôs, shoppings, estações rodoviárias, praças etc. Em geral, pessoas de menor renda, menor alfabetização, têm índices menores de sociabilidade. E acabam não freqüentando locais públicos.

Mais que isso: não pega a população rural. Segundo o Vox Populi, a população rural representa 16% do eleitorado. Nela, Dilma Roussef tem vencido por ampla margem, 50 a 25%. Só nesse universo, a diferença a favor de Dilma representa 4 pontos percentuais dentro do universo total de eleitores, que não são medidos pelo Datafolha. O mesmo ocorre no corte dos entrevistados sem e com telefone. Medindo apenas os com telefone, os dados do Vox são similares aos do Datafolha. Juntando os dois, dá a diferença.

***
Nenhuma teoria conspiratória: o instituto não sabe fazer de outro modo. Sempre foi assim. Essas vulnerabilidades metodológicas não apareceram tanto em outras eleições, porque a imagem de Lula era muito forte para toda a população. Nessa eleição, existe a chamada assimetria de informação: classes de menor renda têm menos informações sobre Dilma Rousseff e as eleições do que classes de maior renda.

Além disso, a pesquisa Datafolha reforça essa falta de informação ao excluir um atalho informacional importante: o partido a que pertence cada candidato.

***

Segundo João Francisco, essa confusão toda acabará na segunda semana de agosto. Aí, já terá começado o horário eleitoral, o país será submetido a uma torrente de informações, o conhecimento se uniformizará e os dados do Datafolha acabarão convergindo para os de outros institutos - embora com muito atraso.

O povo fede



O PSDB, segundo Eliane Castanhêde, está se tornando um partido de massa, mas não de uma "massa qualquer", e sim de uma "massa cheirosa". Para José Serra, qualquer um que tente "definir" o PSDB ou aponte problemas na administração demo-tucana, logo é "petista" ou está repetindo o "trololó petista". Semana passada, fui assistir à peça Policarpo Quaresma, dirigida por Antunes Filho, e quis o destino que FHC estivesse lá também. Os comentários do admirável público foram os mais podres possíveis. Houve toda uma tietagem em cima do ex-presidente e alguns diziam que jamais pediriam autógrafo a Lula, enquanto outros afirmavam que teatro não era coisa de "petista". Como se vê, há muita ignorância, preconceito e estratégias espúrias tanto de políticos quanto de eleitores cheirosos. Eles se merecem, afinal o povo fede. O bom é que essa definição do PSDB, "o partido da massa cheirosa", não é da oposição. Trata-se do mais perfeito exemplo do que é fogo amigo.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Bier über alles!

Praia da Baleia II

Praia da Baleia

Pleito

O raro leitor deve se lembrar de Miguel Mossoró. Nada mais, nada menos, ele prometeu construir uma ponte entre Natal e Fernando de Noronha. A ponte teria 361 km de extensão (o equivalente a 27 pontes Rio-Niterói). É também o que apresentou a proposta do “aluno nota 100”. O aluno que tiver as notas mais altas ganha uma viagem à Disney.

Detalhe: em 2004, Mossoró obteve 67 mil votos na eleição para prefeito de Natal.

Moscas

Em breve mataremos as saudades. Logo, logo, voltarão à cena política personagens como Eymael, o democrata-cristão, e Levy Fidélix, com seu indefectível aerotrem. Sem nos esquecermos das mulheres-fruta; de Dinei, pois "corintiano vota em corintiano"; Cowboy Maluco Beleza; Kid Bengala, e, claro, de Miguel Mossoró, este, certamente, o melhor de todos. Há "políticos" que são da família das moscas teimosas. Por mais que a gente os sacuda, eles tornam e pousam.

sábado, 17 de julho de 2010

Sarkozy, SIP e imprensa brasileira

O presidente da SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa), Alejandro Aguirre, critica Lula, afirmando que seu governo é antidemocrático, pois apoia a ideia de que haja um "controle cada vez maior na imprensa", aos moldes chavistas. No mínimo, o sr. Aguirre desconhece a atuação do PIG (partido da imprensa golpista) e a história recente do país. Para ficarmos em um só exemplo, lembremos da deplorável edição do debate entre Lula e Collor na Globo. O que diria o presidente da SIP sobre a relação de Sarko com a presse francesa? A edição do satírico Le Monte (acima) foi retirada das bancas pela justiça francesa. Só porque nela, Sarkozy é representado nu em uma cela, prestes a manter ato sexual com um homem. Imaginem, raros leitores, se fosse aqui, terra brasilis.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Erro de português

Não existe homem sem linguagem. Titio Aristóteles dizia também que o homem é um animal político. Daí, o rasteiro silogismo: sem linguagem não há política. A turma do Serra, infelizmente, desconhece esses preceitos básicos. A escolha da vice em 2002, Rita Camata, fez a alegria dos humoristas com a chapa Serra i Rita. Piada pronta, retrato fiel do candidato. Em 2010, o slogan "O Brasil pode mais" dá margem, como escreveu Gilberto Felisberto Vasconcellos, para o imediato trocadilho: Com Serra, o Brasil ficará podre demais. Ato falho, figuração certa de um possível governo Serra. Mais uma vez, a turmitcha demo-tucana vai mal, muito mal.

Homenagem a Cervantes

Frente ao excesso mecânico da técnica,
Frente a moinhos com radar, Dulcinéias de vidro,
                                             [armarduras atômicas,
Responderá o equilíbrio de Cervantes.

Murilo Mendes, Tempo Espanhol

El instante

El presente está solo. La memoria
erige el tiempo. Sucesión y engaño
es la rutina del reloj. El año
no es menos vano que la vana historia.
Entre el alba y la noche hay un abismo
de agonías, de luces, de cuidados;
el rostro que se mira en los gastados
espejos de la noche no es el mismo.
El hoy fugaz es tenue y es eterno;
otro Cielo nos esperes, ni otro Infierno.

Jorge Luis Borges, El otro, El mismo

Em Despedida: Proibindo o pranto

Como esses santos homens que se apagam
Sussurrando aos espíritos: "Que vão...",
Enquanto alguns dos amigos amargos
Dizem: "Ainda respira," E outros: "Não." –

Nos dissolvamos sem fazer ruído,
Sem tempestades de ais, sem rios de pranto,
Fora profanação nossa ao ouvido
Dos leigos descerrar todo este encanto.

O terremoto traz terror e morte
E o que ele faz expõe a toda a gente,
Mas a trepidação do firmamento,
Embora ainda maior, é inocente.

O amor desses amantes sublunares
(Cuja alma é só sentidos) não resiste
À ausência, que transforma em singulares
Os elementos em que ele consiste.

Mas a nós (por uma afeição tão alta,
Que nem sabemos do que seja feita,
Interassegurado o pensamento)
Mãos, olhos, lábios não nos fazem falta.

As duas almas, que são uma só,
Embora eu deva ir, não sofrerão.
Um rompimento, mas uma expansão,
Como ouro reduzido a aéreo pó.

Se são duas, o são similarmente
Às duas duras pernas do compasso:
Tua alma é a perna fixa, em aparente
Inércia, mas se move a cada passo

Da outra, e se no centro quieta jaz,
Quando se distancia aquela, essa
Se inclina atentamente e vai-lhe atrás,
E se endireita quando ela regressa.

Assim serás para mim que pareço
Como a outra perna obliquamente andar.
Tua firmeza faz-me, circular,
Encontrar meu final em meu começo.

John Donne. Tradução de Augusto de Campos.  

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Vice (Genérico do Aécio)

De Marcelo Coelho, Folha de São Paulo, 7 de julho de 2010.

Alguns dias a mais, e o próprio Dunga poderia ter sido cogitado. Aplaudiram-no em sua volta ao país; é popular; é sério; é realista; sua ficha, ao que consta, é limpa; veste-se com apuro, não gosta de demagogia e já não promete muita coisa. Ademais, Dunga não deve ter críticas à exploração do pré-sal, nunca falou em plebiscito sobre a pena de morte, e há de considerar radical demais a proposta de multar os cidadãos que deem esmolas na rua. Três pontos que o tornam mais moderado, ou menos exótico, do que Índio da Costa.

Multar quem dá esmolas! Em matéria de Estado policial, creio que nunca se imaginou ameaça tão severa contra as classes privilegiadas. Brincadeiras à parte, o problema da escolha de um vice nunca é fácil de resolver. Há sempre a questão dos palanques estaduais, o tempo na TV, a composição com os demais partidos da aliança.

Provavelmente, tudo ficou mais complicado para o PSDB por alguns motivos de ordem política e outros de ordem pessoal. Passo rapidamente pela questão política. A candidatura Serra hesita entre a identidade puramente oposicionista (Álvaro Dias reforçaria isso) e o perigo de confrontar-se com a popularidade de Lula. A situação partidária força uma aliança à direita (Dornelles e Kátia Abreu seriam os nomes adequados), mas o clima predominante é redistributivista e pró-Estado, e o próprio Serra se sente desconfortável quando levado a defender o oposto.

O vice do tucano, assim, teria de ser precisamente alguém que não significasse nada, que não inclinasse a balança para nenhum lado. A questão não é apenas política, mas também pessoal. Fulano? Não suporta Serra. Beltrano? Serra não o engole. Ninguém é bom o bastante para que Serra o aceite, e ninguém é tão ruim que não possa rivalizar com ele.

Uns Braços

Não o achei propriamente bom, mas sim, engraçado. E engraçado mais pelas distâncias do que pelas semelhanças que observei ao comparar as imagens que fazia das personagens D. Severina, Inácio e Borges com as imagens que nos são apresentadas no filme. Parece-me quase sempre decepcionante a adaptação de grandes obras da literatura nacional ao cinema. Excluiria, sem dúvida, Lavoura Arcaica. Filme e livro dialogam em sintonia perfeita, cada um com sua linguagem. De Uns Braços, baseado no célebre conto de Machado de Assis, não poderíamos dizer a mesma coisa. Vale, entretanto, pelo narrador em off. O que é dito, como se sabe, serve mais para mostrar o ocultamento da paixão do que o seu desenrolar. Capciosa natureza do desejo. Há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O teatro e seu duplo

Luiz Fernando Ramos fez, certa vez, uma interessante aproximação entre Antonin Artaud e Samuel Beckett. Por um lado, Beckett tem um verdadeiro culto à palavra. Por outro, Artaud escreve que “o mais urgente não me parece tanto defender uma cultura cuja existência nunca salvou qualquer ser humano de ter fome e da preocupação de viver melhor, mas extrair, daquilo que se chama cultura, idéias cuja força viva é idêntica à da fome”. Artaud defende uma “poesia no espaço, independente da linguagem articulada” cuja encenação seria metafísica e alquímica contra “a ditadura exclusiva da palavra”. Dois posicionamentos bem distantes. Porém, havia em ambos a busca de uma nova escritura que tivesse por objetivo incorporar a materialidade mesmo da cena. Se Beckett procurou trazê-la a partir das palavras e principalmente através da rubricas, Artaud, por sua vez, buscava uma despalavra cujas possibilidades de realização não estavam no cérebro do autor, “mas na própria natureza”, “no espaço real”. Segundo Ramos, "Beckett buscou inscrever na palavra o corpo da cena. Artaud pretendeu revelar o corpo da cena com a invenção de uma nova palavra".

O bilingüismo de Beckett

Em Beckett, impressiona, indiscutivelmente, o seu peculiar bilingüismo. Ele oscila entre duas línguas e traduz a si mesmo. Tudo atrelado às dificuldades de uma prosa que, tocada por um narrador que se põe em xeque a cada passo, rarefaz o enredo, dissolve os personagens, abandona a pontuação, abraça a elipse e a repetição como procedimentos. Fundamental notar que Beckett é um escritor que se fixou numa língua que não é a sua. Há aí, sem dúvida, todo um afã de despersonalização. Para Ferreira Gullar, Beckett é apenas um "chatola". Para outros escritores, há a percepção (menos superficial) de que a escrita de Beckett visa a uma lógica fria, a um distanciamento que dificilmente ele chegaria se escrevesse em sua língua materna.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Xeque

Fosse um jogo de xadrez, Ricardo Teixeira seria o Rei; Dunga, Rainha e Cavalo; Jorginho, Torre e Bispo; Felipe Melo, claro, Cavalo; Lúcio, Torre e peão; Júlio César, Gilberto Silva, Josué, Michel Bastos, Júlio Baptista, Kléberson e Maicon seriam os demais peões; Kaká, evidente, o outro Bispo.

Globo e CBF IV

Globo e CBF III

Globo e CBF II

Globo e CBF I

Seleção Brasileira

"Que um fraco Rei faz fraca a forte gente".

Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, Canto III.

Destino?

Sinto-me à parte em toda parte e em toda parte à parte.

Cada um com sua Copa

De José Geraldo Couto, na Folha de 12/7:

Cada um levará consigo uma Copa, ou a lembrança dela. A minha Copa pessoal de 2010 tem duas vitórias arrasadoras da Alemanha (sobre a Inglaterra e a Argentina), que tive o privilégio de presenciar ao vivo, mas tem sobretudo dois jogos de dramaticidade ímpar: Uruguai x Gana e Espanha x Paraguai. Os poucos minutos que se sucederam ao pênalti cometido pelo uruguaio Suárez, ao defender com a mão em cima da linha aquele que seria o gol da classificação de Gana, valem por uma tragédia grega, por um romance de queda e redenção humana. Pois, no fundo de tudo, por trás da saturação de imagens, logotipos, orçamentos megalômanos, multidões em frenesi, está o homem, com sua grandeza e miséria, sua pequenez e sua glória.

Trololós perigosos

Gabriel Priolli foi afastado da direção de jornalismo da TV Cultura. O ponto nevrálgico teria sido uma reportagem sobre os pedágios nas estradas de São Paulo. Ao que parece, a reportagem foi exibida no dia 9/7, pleno feriado comemorativo da brava resistência paulista na Revolução Constitucionalista de 1932. Heródoto Barbeiro foi substituído no comando do "Roda Viva" por Marília Gabriela. Alega-se que o fato nada tem a ver com a pergunta feita a José Serra sobre os famigerados pedágios. O que se percebe, no entanto, é que criticar o que está aí, sob o nosso nariz, não é permitido. Resta-nos ouvir o bordão "São Paulo é um estado cada vez melhor" como uma vuvuzela triste, mentirosa e distorcida.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Que é a poesia?

De Antônio Cícero, Folha de São Paulo, sábado, 4 de outubro de 2009.

Para dizer o que penso ser a poesia, recorro, em primeiro lugar, ao poema "O Rio", de Manuel Bandeira:

“O rio

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.”

Desde o título, "O Rio", torna-se inevitável pensar no famoso rio do filósofo grego Heráclito, em que não é possível pisar duas vezes. O primeiro verso reforça essa impressão: "Ser como o rio"... Mas a sentença de Heráclito – aparte certas interpretações recherchées – enfatiza o mobilismo universal, o fato de que coisa nenhuma jamais permanece a mesma. O rio de Bandeira, ao contrário, é em primeiro lugar a própria imagem da constância e até de um certo estoicismo: "Ser como o rio que deflui/ Silencioso dentro da noite./ Não temer as trevas da noite".

O rio a defluir silenciosamente dentro da noite não teme as trevas da noite porque ele é também o rio da noite, isto é, a noite enquanto rio. O infinitivo aqui é implicitamente desiderativo: ele manifesta um desejo. Mas quem é que aqui deseja? Talvez se possa dizer que aquele que deseja é o poeta, ou talvez o "eu" lírico, o heterônimo, o personagem em que o poeta se transforma para escrever o poema; mas o infinitivo excede qualquer subjetividade, qualquer "eu". A rigor, não interessa quem deseja, mas apenas o próprio desejo, que se identifica com o ser. Feito um fenômeno da natureza, feito o próprio rio silencioso dentro da noite e feito a própria noite, o desejo, o ser, os versos do poema e o próprio poema estão lá, no infinitivo, silenciosos como o rio e como a noite. Fundem-se no poema o leitor, o poeta, a noite, o rio, as estrelas: "Se há estrelas nos céus, refleti-las./ E se os céus se pejam de nuvens,/ Como o rio as nuvens são água,/ Refleti-las também sem mágoa / Nas profundidades tranqüilas".

Se há estrelas nos céus, o poema as tem na superfície. Se há nuvens que o impedem de refletir as estrelas, aquelas são refletidas na profundidade do seu ser, pois as nuvens são feitas da mesma água que ele. Aqui é de Tales, o primeiro filósofo grego, para quem tudo vem da água e tudo volta para a água, mais do que de Heráclito, que me lembro.

E me lembro sobretudo do poeta Jorge Luis Borges, cujo poema “Nuvens (I)” – do qual apresento a seguir uma tradução literal, seguida do original – diz:

“Nuvens (I)

Não haverá uma só coisa que não seja
uma nuvem. São nuvens as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo aplanará. São nuvens a Odisséia
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de tua cara já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte noutra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que perdeste”.

"Nubes (I)

No habrá una sola cosa que no sea
una nube. Lo son las catedrales
de vasta piedra y bíblicos cristales
que el tiempo allanará. Lo es la Odisea,
que cambia como el mar. Algo hay distinto
cada vez que la abrimos. El reflejo
de tu cara ya es otro en el espejo
y en el día es un dudoso laberinto.
Somos los que se van. La numerosa
nube que se deshace en el poniente
es nuestra imagen. Incesantemente
la rosa se convierte en otra rosa.
Eres nube, eres mar, eres olvido.
Eres también aquello que has perdido."


As nuvens são as transformações da água originária, isto é, são todos os entes que o tempo aplanará. Também são nuvens os versos do poema de Homero. Há entretanto uma diferença: os entes em geral perderam a memória de sua origem aquática e se esqueceram de que são nuvens. A "Odisséia", porém – o poema por antonomásia –, muda como o mar. Algo há distinto cada vez que a abrimos. Eis a diferença entre o poema e os demais entes: o poema jamais olvida, no fluxo de sua superfície significante, morfológica, sintática, melódica, rítmica e de suas submersas correntes semânticas, a natureza líquida de todas as coisas e, principalmente, de si próprio.

Lembro que outro dos primeiros filósofos gregos, Anaximandro, dizia que todos os entes determinados provêm do indeterminado (que ele chamava "ápeiron") e têm como causa o indeterminado – que podemos entender como o movimento, a mudança, a vida, o tempo – do qual provêm. Em cada um deles, porém, o indeterminado se transformou em algum ente determinado. Também o poema é um ente determinado, mas um ente determinado que, refletindo o seu oposto, porta em si a marca d'água do movimento originário. Não apenas, cada vez que o lemos, ele se torna diferente do que era na leitura anterior, mas se torna diferente de si próprio no exato instante em que o estamos a ler. Chamo "poesia" essa propriedade do poema.

Bairro Gótico II

Bairro Gótico

Velibs catalãs

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A Música que Chopin Esqueceu de Fazer I

Certo dia Baden chegou à casa do poetinha trazendo nos dedos uma belíssima melodia que compôs num momento muito inspirado. Era por volta das nove da noite quando Baden apresentou a melodia, e Vinicius ficou logo muito empolgado com a música que inspiraria mais uma bela poesia:

- Puxa Badinho, que música linda! Toca de novo!

Baden também entusiasmado com a empolgação do poeta tornou a tocar a música. E entraram pela noite tocando e ouvindo-a várias vezes, fazendo uma pausa de vez em quando pra conversar sobre os mais variados assuntos, como assombração, Mula sem Cabeça... Isso tudo regado a muito whiskie (papai contava que nessa noite foram umas quatro garrafas!). A madrugada chegou logo, as garrafas foram se acumulando e Baden foi ficando meio desconfiado de alguma coisa, pois o Vinícius estava pedindo pra ele tocar a música desde cedo e não havia mencionado nada sobre a letra. Vinícius tornou a pedir para ele tocar, e Baden então perguntou:
- Espera aí Vinicius, tá tudo certo, mas… Cadê a letra?
- A letra? Bom, na verdade aconteceu uma coisa, é… Eu não vou fazer essa letra mais não!
- Como assim? Estamos aqui, só nós dois, juntos desde cedo, tocando e bebendo, agora são altas horas e você me diz que não vai fazer a letra!
O que houve?

A Música que Chopin Esqueceu de Fazer II

- Não foi nada demais. Mas, eu prefiro não dizer, vamos deixar isso pra lá.
- Não, Vinicius, agora você vai me dizer o que houve.
- Sabe o que é Badinho, essa música que você fez é um plágio!
- Plágio?! Como assim, Vinicius?
- É Badinho, é plágio.
- Não, Vinícius, você tá enganado…
- É, Baden, eu tenho certeza. Por isso não vou fazer essa letra. Depois vai sair nos jornais: “A dupla Baden e Vinicius plageiam…” Fica chato, entende?
- Mas, Vinícius, essa melodia me veio por inteira, eu fiz de uma vez, não pode ser plágio!
- É sim, Baden, tenho certeza.
- Mas plágio de quê, e de quem?
- Ora, Baden, isso ai é um prelúdio de Chopin!
- Não, Vinícius, você está enganado. Você bebeu demais e está confundindo as bolas.
- Não, Baden, você foi quem bebeu demais. Fez uma música de Chopin e tá achando que é sua.
- Mas, Vinícius, eu conheço os prelúdios de Chopin, estudei todos. Te garanto que não tem nada de Chopin nessa música!
- Eu também conheço, Baden, meu ouvido não falha, isso ai é Chopin com certeza! Quer ver só?! Eu vou acordar minha mulher que é formada em piano e conhece tudo, espera aí…
- Não faz isso, Vinicius, tá muito tarde, e a gente tá com um bafo danado…
- Tudo bem, ela já tá acostumada.

A Música que Chopin Esqueceu de Fazer III

E lá foi o Vinicius chamar sua mulher, que na época era a Lucinha Proença. Ela chegou na sala sem saber o que estava acontecendo, mas vendo a cena perguntou:
- Oi, Baden, tudo bem? Vocês querem um café?
- Não, Lucinha, sobretudo não vamos misturar… Obrigado.
Vinicius retomou seu lugar e dirigindo-se ao Baden, disse meio ríspido:

-Toca!

Baden executou e Vinícius ficou esperando algum comentário da Lucinha, que, em silêncio, não sabia o que dizer diante da visível espectativa do poeta:
- Como é, você não vai dizer nada?
- Como assim, o que você quer que eu diga?
- Toca de novo Baden!

A Música que Chopin Esqueceu de Fazer IV

Ao final desse bis, Vinicius novamente perguntou para mulher:
- Isso não é Chopin?!
- Não.
- Como não é Chopin?!
- É uma canção romântica, é muito bonita, mas não é Chopin.
- Ah, então você também tá contra mim?!
Fez-se então um silêncio que confirmou um grande mau entendido da parte do poeta, que com muita astúcia concluiu:

- Então Chopin esqueceu de fazer essa!

Vinicius pegou papel e caneta e escreveu quase que instantaneamente uma belíssima poesia, e a música foi batizada de "Samba em Prelúdio".

Fonte: sítio oficial de Baden http://www.badenpowell.com.br/

Hitler, Regina Duarte, Jânio, FHC e Suplicy

terça-feira, 6 de julho de 2010

Sneijder e Lúcio (2010)

Embora, pela questão da meia, "a cena" de Roberto Carlos pareça mais grave, reparem que Lúcio não marcava ninguém, ninguém, ninguém, no lance que originou o segundo gol da Holanda. Só olhava. Torcia, talvez, pelo rebote, para que ele, mais uma vez puxasse, sem nenhuma técnica ou encanto, o contra-ataque. Roberto Carlos é bad boy; Lúcio, evangélico, como boa parte do elenco brasileiro, capitaneado pelo auxiliar Jorginho. Talvez, seja por aí que devamos interpretar o silêncio de todos. Ninguém perguntou onde estava o capitão. Copa do Mundo se joga com talento e não apenas com "vontade" e "raça". Reconheço o esforço do zagueiro. Não esqueço o lance bizarro de 2002 contra a Inglaterra. E muito menos o fato de que já tivemos zagueiros com muito mais categoria.

Henry e Roberto Carlos (2006)